Muito além de A a Z

Quando resolvi encarar o desafio de ensinar alemão como segunda língua, mal sabia que a aventura estava apenas começando. Pouquíssimo tempo depois de ter assumido minha primeira turma de jovens refugiados, as conversas com outros professores e professoras sinalizavam uma necessidade específica surgindo nas escolas de ensino médio aqui em Bremen. Estou falando de Bremen porque esta é a minha realidade, mas é bem capaz que tenha sido assim na Alemanha inteira. De repente, o perfil dos alunos das classes de alemão como segunda língua começou a mudar: de altamente escolarizado para analfabeto .

Na minha primeira turma de Vorkurs, (como são chamadas as primeiras classes frequentadas pelos adolescentes refugiados em Bremen) tive alunos cheios de ambições. Seus pais eram médicos, advogados e empresários na Síria e muitos deles sonhavam em seguir os passos dos pais. Eles e elas se interessavam pelo que precisariam fazer para ter esse tipo de formação e tinham consciência da necessidade de aprender muito bem a língua para isso.

Além disso, essa galera se interessava por normas e valores da cultura que os acolhia, e, por isso, me faziam virar noites preparando aulas que satisfizessem a sede de aprendizado. Por aquela turminha, quebrei minha cabeça diversas vezes para preparar aulas compreensíveis a todos, de acordo com as competências linguísticas de cada pessoa. Era desafiador e muito divertido!

Foram diversas aulas nas quais, além de aprender gramática e vocabulário, discutíamos tolerância religiosa, diferentes formas de governo, falávamos sobre racismo e outros temas cabeludos. Não precisou de muito tempo com aquela turma para notar que, em sua grande maioria, a galerinha sabia bem como as escolas funcionam e suas famílias eram presentes e valorizavam a formação acadêmica.

Com o passar do tempo, o alunado começou a mudar. De repente, na minha classe, a maioria mal sabia assinar o próprio nome. Eram jovens de 13, 14 anos que nunca tínham vivenciado um momento sequer de paz em seus países de origem. Famílias que precisaram juntar tudo e fugir, porque o vilarejo foi bombardeado e não há como priorizar a escolaridade de suas crianças.

Buscando ensinar de forma alinhada às necessidades de meus alunos e alunas, acabei enveredando pelo terreno da alfabetização de jovens. Hoje, coordeno um centro de alfabetização para jovens refugiados.

Na nossa escola, primeiro se ensina a ler, escrever e entender como as demais instituições de ensino funcionam, bem como os possíveis caminhos a serem seguidos na trajetória escolar. Vencida esta etapa, eles e elas ainda têm dois anos de ensino de língua, sendo que, no segundo ano, na maioria dos casos, esses jovens já participam das aulas das demais matérias no turno da tarde. Até concluirem a escola, a galera enfrenta muitas incompreensões, sejam linguísticas ou culturais, inúmeros obstáculos e muito, mas muito preconceito e segregação.

Com tudo isso, passados dois anos que a minha primeira turma de alfabetização tinha terminado, recebi uma mensagem de um ex-aluno pelo WhatsApp. Em sua mensagem, escrita em um alemão muito bom, ele me contava que tinha conseguido passar em uma prova de História e outra de Matemática, feitas em sua turma regular na escola de ensino médio. Ele ainda me agradecia por sua conquista e dizia que estava adorando estudar, aprender e que já começava a considerar a possibilidade de fazer um curso profissionalizante para se tornar assistente de classe em uma escola de ensino fundamental. A mensagem terminava com ele me perguntando se eu achava que ele teria chance de conseguir levar esse plano adiante.

Respondi, primeiramente, celebrando sua conquista, mas logo tive que me confrontar com sua pergunta: será que ele tem chance de conseguir sua qualificação profissional?

Teria, se a escola e a sociedade conseguissem enxergá-lo além de sua origem. Se seus professores e professoras conseguissem entender o seu analfabetismo prévio e o analfabetismo de sua família objetivamente, ou seja, tão apenas como fatos ocorridos em decorrência da tragédia que se abateu em seu país de origem, ao invés de como falha de caráter ou impeditivos para seu futuro. Seria possível, se a sociedade pudesse resistir ao impulso de, constantemente, encaixá-lo em estereótipos múltiplos.Teria muita chance, se encontrasse pessoas dentro das instituições que, mesmo enxergando suas limitações, preferissem se concentrar em seus potenciais, de forma a motivá-lo.

Pensei em tudo isso, mas só respondi: “claro que você consegue. Me avise se eu puder ajudar de alguma forma”.

Este texto foi originalmente postado no blog A Saltimbanca, em 1 de setembro de 2019.